Era da personalização: o comportamento como mercadoria

Por Bernardo de Azevedo e Souza

A empresa Alexa Internet Inc. divulgou recentemente uma relação com os 500 sites mais acessados do mundo. A maioria dos internautas provavelmente acertaria, sem precisar visualizar a lista, quais deles ocupam as primeiras colocações: Facebook, Google e Youtube. O trio concentra hoje mais de 50 bilhões de acessos mensais, número este que cresce cada vez mais. A relação continua com sites como Baidu, Yahoo, Amazon, dentre outros. Com exceção do Baidu, ferramenta similar ao Google (utilizada principalmente na República Popular da China), os leitores certamente adivinhariam muitos dos endereços eletrônicos mais acessados na atualidade.

Mas o que a maioria dos internautas talvez não saiba é que cada um desses sites (especialmente os 50 primeiros), no momento em que são acessados, instalam uma série de cookies e beacons de rastreamento pessoal. Tudo isso acontece rapidamente e, sem saber, os usuários têm seus computadores “infestados” por esses pacotes de dados, que passarão a lhes indicar anúncios a partir do comportamento verificado na rede. Abrir, mesmo que por um instante, uma página com um texto sobre infidelidade poderá desencadear publicidade sobre testes de paternidade por DNA; compartilhar um artigo sobre culinária no Facebook poderá fomentar diversas propagandas de panelas revestidas. E assim sucessivamente.

Vivemos uma era digital em que os gigantes da Internet buscam saber o máximo possível sobre seus clientes (usuários). Enquanto eu e você acreditamos que estamos “levando vantagem” com um serviço sem custo e bastante útil, a verdade é que existe um ônus por detrás da suposta gratuidade: as informações que fornecermos sobre nós mesmos. Tal aspecto fica claro, por exemplo, quando acessamos o Facebook pela primeira vez. Antes de fazer o cadastro inicial, lemos a seguinte frase: “Cadastre-se. É gratuito e sempre será”.

De fato: não pagaremos qualquer centavo no momento de criar nossa conta pessoal. Mas, na medida em que utilizarmos o serviço diariamente, passaremos a alimentá-lo com detalhes pessoais de nossas vidas. E estas informações serão transformadas em dinheiro de forma bastante direta. Isso os gigantes fazem muito bem. Na acertada advertência de Andrew Lewis:

“Se você não está pagando por alguma coisa, você não é o cliente; você é o produto à venda”.

A fórmula é simples e eficaz: quanto mais informações coletadas, mais personalizadas serão as ofertas de informação, e mais anúncios as empresas conseguirão vender. Consequentemente, a chance de que nós compremos os produtos oferecidos será obviamente maior. A personalização é uma estratégia fundamental não apenas para os cincos maiores sites da Internet como também para muitos outros. Eli PARISER (2012, p. 114) denomina este gigantesco sistema de bolha de filtros:

“A nova geração de filtros on-line examina aquilo que aparentemente gostamos – as coisas que fazemos, ou as coisas das quais as pessoas parecidas conosco gostam – e tenta fazer extrapolações. São mecanismos de previsão que criam e refinam constantemente uma teoria sobre quem somos e sobre o que vamos fazer ou desejar a seguir”.

Estamos vivendo, portanto, a era da personalização. Nosso comportamento transformou-se em mercadoria. É um equívoco pensar que os mecanismos de busca são imparciais. Os search engines são cada vez mais parciais e se adequam à visão de mundo de cada um. Basta sentar ao lado de um amigo e digitar, cada um na tela de seu computador, os mesmos termos no Google. Os resultados apresentados não serão os mesmos. Na sociedade digital contemporânea, o monitor do computador é uma espécie de espelho que reflete nossos próprios interesses. A análise de nossos cliques é realizada por observadores algorítmicos.

Há aqueles que não se importam com toda essa personalização. Zygmunt BAUMAN (2013, p. 117), embora critique a proliferação de dispositivos de controle e vigilância (real e digital) da atualidade, não vislumbra sugestões de livros oferecidas pela Amazon como algo negativo. Como refere o sociólogo polonês:

“Não vejo mais suas sugestões como algo comercial; encaro-as como um ajuda amigável, que facilita meu avanço pela selva do mercado editorial. E fico grato”.

Mas há outros que se perguntam para onde a personalização irá nos levar. Afinal, até que ponto a personalização excessiva não está nos impedindo de entrar em contato com experiências e ideias novas que possam modificar nossa concepção do mundo e sobre nós mesmos? Estariam os filtros cortando as sinapses de nossos cérebros e nos submetendo, sem saber, a uma espécie de “lobotomia global”?

Se é bem verdade que, de um lado, a personalização tem seus pontos positivos, trazendo-nos benefícios e facilidades; de outro ela sempre envolve uma troca: adquirimos conveniência e conforto, mas cedemos à maquina um pouco de privacidade e controle. A bolha de filtros desenvolve uma impressão de que nosso interesse próprio é tudo que existe. Embora isso seja excelente para vender produtos na Internet, não ajuda as pessoas a tomar melhores decisões.

Ao vivermos dentro da bolha, não temos contato com a pluralidade de ideias e com novas culturas. Reduzimos a diversidade de elementos que nos leva a pensar de forma inovadora. Se permanecermos imersos na filtragem, perderemos aos poucos a flexibilidade e abertura mental que são criadas pelo contato com o diferente, com o novo. A rede personalizada nos estimula a passar menos tempo em nosso estado de propensão à descoberta, tornando-nos assim alienados.

Todo esse cenário tende a se gravar no futuro, pois as tecnologias que favorecem a personalização ficarão ainda mais avançadas. Os sensores que recolhem novos sinais pessoais e fluxos de dados estarão cada vez mais inseridos em nosso cotidiano. O próprio ambiente em que estamos inseridos, por meio de tecnologias de “realidade aumentada”, se modificará para se adequar às nossas preferências. Até mesmo às nossas oscilações de humor. Mesmo que nos afastemos do computador, a bolha de filtros não desaparecerá.

O mais grave de tudo é que esta mudança é, em grande medida, invisível para o usuário. Fica fora de seu controle. A Internet, embora criada para nos dar mais controle sobre nossa vida, na verdade está retirando este controle. Se a personalização seguir com sua trajetória atual, o futuro poderá ser mais problemático do que imaginamos.

Cabe a todos nós modificar este cenário. E, nesse ponto, os programadores e engenheiros de software estão numa posição de grande poder. Ainda que tenham todo o direito de trabalhar onde quiserem (e para quem quiserem), é um erro acreditar que suas atividades profissionais não possuem qualquer consequência moral ou política. As mais simples decisões de design podem, sim, afetar a vida diária de milhões de pessoas.

A personalização está modificando o modo como vivenciamos a Internet e enxergamos o mundo. Não podemos permitir que ela mude, de maneira definitiva, nossa essência e descaracterize quem realmente somos.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a Internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

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