Afinal, o que é o Marco Civil da Internet?

Coluna Semanal Marco Civil da Internet

Por Bernardo de Azevedo e Souza e Mauricio Brum Esteves

A espécie humana é considerada pela maioria dos critérios biológicos como a mais bem-sucedida que o planeta já presenciou. Tal conquista se deve, em grande parte, à nossa capacidade cognitiva: a habilidade que nossos cérebros têm para lidar com a informação de modo flexível. O ciclo evolutivo nos proporcionou, ao longo de séculos, a imensa capacidade de processar os dados que recebemos. Contudo, como toda e qualquer aptidão cognitiva, o processamento da informação cansa (e muito), razão pela qual nem sempre conseguimos ser exitosos em separar o trivial do importante.

O cérebro humano evoluiu num mundo distante e mais simples do que o atual, em um tempo em que a quantidade de informação era inferior. Se já era difícil processar os dados no passado, hoje o cenário é ainda mais complexo, visto que nos defrontamos com uma quantidade infindável de conteúdos. Essa explosão informacional onera a todos nós, em todas as esferas. Lutamos diariamente para equacionar o que realmente precisamos (e o que não precisamos) saber. Fazemos anotações, criamos lista de propriedades, deixamos alertas por todos os cantos, mas, ao final, temos a sensação de que não conseguiremos absorver todas as informações disponíveis.

E assim, em um mundo interligado cada vez mais cheio de distrações, damos pouca ou nenhuma relevância a assuntos que realmente merecem atenção. É o que se observa em relação ao chamado Marco Civil da Internet.

Mas o que é o Marco Civil da Internet?

Em síntese, é uma tentativa pioneira de estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Trata-se de um primeiro passo dado por nosso país em direção à regulamentação mínima da Rede Mundial de Computadores, que se iniciou no ano de 2009 (quando surgiram os primeiros debates sobre o tema), e se materializou em 2014 (momento em que sobreveio a Lei 12.965, cunhada posteriormente de Marco Civil da Internet). Veja a íntegra da lei aqui.

Se, durante décadas, a Internet foi considerada por muitos como terra de ninguém, com o advento do Marco Civil passou a gozar de regramentos mínimos no que diz respeito ao seu uso (ao menos no Brasil), buscando interagir com o sistema jurídico como um todo a partir de um paradigma aberto e axiológico. O Marco Civil da Internet não tem a pretensão de ser um microssistema normativo autônomo e completo, mas visa a evitar a censura, promover a liberdade de expressão, a privacidade e a neutralidade da rede, para, em última análise, proteger o usuário e sua dignidade.

Embora a liberdade da expressão e privacidade do usuário sejam os principais pilares do Marco Civil da Internet, uma parcela considerável dos meios midiáticos de comunicação insiste em sustentar que “a Internet prescinde de regulamentação”. Do mesmo modo, algumas mídias afirmam que o Marco Civil da Internet “possui brechas que promovem e autorizam a censura”. Tais críticas denotam uma errônea compreensão da legislação e promovem, por via de consequência, a expansão do ativismo judicial e do decisionismo, levando alguns magistrados a promover bloqueio de sites e aplicativos na Internet, como os recentes casos ocorridos no país envolvendo o WhatsApp.

Em resumo, qualquer ato, fato, regulamentação e/ou decisão que expor a dignidade do usuário, seja por meio da censura, bloqueios, tratamento ilícito de dados, venda de dados sensíveis, etc., estará, a priori, violando o Marco Civil da Internet. Assim, é necessário que os intérpretes do Marco Civil da Internet tenham ciência de sua base axiológica e seus critérios hermenêuticos, na linha do que dispõe o art. 6º da Lei 12.965/2014:

Na interpretação desta Lei serão levados em conta, além dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural.

Qualquer decisão que envolva a interpretação da regulamentação da Internet no Brasil deve, obrigatoriamente, estar embasada e considerar esta carga valorativa, sendo absolutamente temerário relegar a culpa pelas limitações cognitivas dos intérpretes em uma legislação que tem se demonstrado absolutamente moderna e adequada para a realidade brasileira (e, aliás, tem servido de modelo para outras legislações ao redor do mundo). Da mesma forma, diante da atualidade e complexidade do tema, o Marco Civil da Internet pode e deve ser constantemente debatido e complementado, seja em âmbito legislativo, jurisprudencial ou administrativo (CGI.br).

O futuro da Internet será ainda ainda muito enfrentado em fóruns técnicos especializados. É bem certo que, movidas pela ânsia de entender os “problemas” e “batalhar por seus Direitos”, pessoas que nunca antes haviam se interessado pelos aspectos técnicos da Internet (e suas nuances jurídicas) se lançaram em busca de conhecimento. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. A expectativa é de que o usuário médio (aquele sem conhecimento técnico sobre o tema) adentre, cada vez mais, neste âmbito público de debate.

A coluna semanal que ora inauguramos espera se inserir neste contexto, promovendo a expansão das discussões sobre a Internet e sua regulamentação. Continuamos nossa conversa na próxima quarta-feira (14/09). Até lá!


Bernardo de Azevedo e Souza – Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

Mauricio Brum Esteves – Mestrando em Direito. Advogado.

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