A responsabilidade (ou imputabilidade) é o terceiro grande pilar de sustentação do edifício legislativo do Marco Civil da Internet. Nas últimas semanas, foi objeto de nossa atenção os outros dois pilares – neutralidade da rede e privacidade –, que, juntos com a responsabilidade, dão sustentação epistemológica ao Marco Civil. Cabe recordar, caro leitor, que na base destes três grandes pilares está o fundamento da liberdade de expressão, sem o qual seria impossível erigir a arquitetura do Marco Civil como um todo.
De todos os três pilares de sustentação, o que possui relação mais profunda com o fundamento da liberdade de expressão é, sem dúvida, o da responsabilidade, que analisaremos hoje. Para a melhor compreensão desta relação profunda, poderíamos exemplificá-la por meio da criação de duas máximas:
Máxima 1: Todos são livres para se expressar na Internet;
Máxima 2: Todos são responsáveis por suas ações e conteúdo de manifestações na Internet.
Sempre nos pareceu equivocada a alegação, dita aos quatro ventos por internautas, de que a Internet é terra de ninguém. Aqueles que assim afirmam incorrem, no mínimo, em dois equívocos. O primeiro deles é cogitar que ninguém se importa ou cuida da rede, quando a própria arquitetura da Internet – com todas suas complexidades, códigos, sistemas e protocolos – demonstra exatamente o contrário. O segundo erro é pensar que as pessoas não são responsáveis pelas opiniões, comentários e conteúdos que veiculam na rede.
Durante décadas, esse segundo equívoco foi recorrente em nosso país. Como o Brasil jamais assumiu uma postura ativa no sentido de responsabilizar os internautas pelos conteúdos publicados, era até possível compreender a insistência na famigerada frase. Contudo, com o advento do Marco Civil da Internet, e a consequente criação de ferramentas jurídicas para se identificar condutas na web e responsabilizar os seus agentes, o “cântico” Internet é terra de ninguém, entoado ainda por muitos, perdeu definitivamente o sentido.
Se antes existia até então uma aparente desordem, esse desarranjo se embasava na ausência de uma legislação específica de regulamentação da rede. E agora, caro leitor, a legislação existe e está ao alcance de um clique.
Não, a Internet não é (mais) terra de ninguém.
Responsabilidade no Marco Civil da Internet
Mas, afinal, quais são as ferramentas jurídicas disponibilizadas pelo Marco Civil da Internet para responsabilizar os internautas? Um bom exemplo é a obrigação de guarda dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet pelo período de 01 (um) ano, para provedores de conexão, ou 06 (seis) meses, para provedores de acesso à aplicação, conforme sinalizam os arts. 13 e 15 do Marco Civil da Internet:
Art. 13. Na provisão de conexão à internet, cabe ao administrador de sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano, nos termos do regulamento.
Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.
Tais registros são indispensáveis para a investigação de condutas na Internet. Contudo, não basta à guarda destes registros. Há, também, a obrigação de que os mesmos sejam disponibilizados, mediante determinação judicial, de forma “estruturada” e “interoperável”. Considerando que, na camada de rede de uma determinada aplicação, milhares de endereços IPs trafegam a cada segundo, é insuficiente que o provedor efetue a guarda de todos os IPs, de forma indiscriminada. É preciso organizá-los de modo a individualizar condutas e cumprir com eventual decisão judicial que o obrigue a fornecer tais registros para fins de investigação de ilícitos praticados na Internet.
A identificação de agentes infratores na Internet não esgota o pilar da responsabilidade, mas cria condições para que este pilar possa existir. Caso os agentes pudessem ocultar os rastros de suas ações na Internet, certamente o pilar da responsabilidade se esvairia de qualquer sentido. Graças à necessidade de guarda de registros, bem como a expansão de ambientes que demandam cadastramento e identificação dos usuários logados – banco, conta de e-mail e redes sociais, e.g. – é que a responsabilidade dos agentes se mostra possível de averiguação e punição.
A responsabilidade dos agentes, em si, resta disposta nos artigos 18 e 19, do Marco Civil da Internet. Em razão da clareza da redação, merecem transcrição:
Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Na fórmula da responsabilidade criada pelo Marco Civil da Internet, os provedores de conexão à Internet cujo serviço se limita à venda de acesso à Internet jamais serão responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Por outro lado, os provedores de aplicação (como o Facebook) passam a ter a obrigação de, após ordem judicial específica, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente pela decisão, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado. Caso o provedor de aplicação não tome providências cabíveis, conforme acima, será subsidiariamente responsabilizado.
Antes do advento do Marco Civil da Internet, prevalecia no Brasil, assim como ainda vige nos Estados Unidos da América, a regra do notice and takedown. É dizer: após receber uma notificação de algum usuário, o provedor de aplicação possui o dever de informar o titular do conteúdo apontado como infringente, bem como, automaticamente, tornar indisponível o conteúdo, sob pena de ser considerado solidariamente responsável.
Embora este sistema possa aparentar gozar de maior celeridade, o elevado número de notificações falsas acabou ensejando a criação de um sistema de censura. Inúmeros conteúdos legítimos acabavam sendo “derrubados” de forma indevida, sem que muitas vezes o provedor pudesse interferir nesta relação, sob pena de – repita-se – sendo solidariamente responsabilizado.
Por esta razão, com a finalidade de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o Marco Civil da Internet optou pelo modelo de retirada de conteúdo da Internet mediante decisão judicial. Mais do que isso: optou por tornar irresponsáveis os provedores de conexão e aplicação, relegando, prudentemente, a responsabilidade das ações a seus próprios agentes. Na Internet, somos responsáveis por tudo aquilo que fazemos. Em se tratando da rede, todo cuidado é pouco. Por isso, fica aqui o alerta de Eric Schmidt (Presidente Executivo do Google) e Jared Cohen (Diretor do Google Ideias) a todos nós, internautas:
Como a informação quer ser livre, não escreva nada que não possa ser lido em voz alta diante de você num tribunal ou visto impresso na manchete de um jornal.
Bernardo de Azevedo e Souza – Mestre em Ciências Criminais. Advogado.
Mauricio Brum Esteves – Mestrando em Direito. Advogado.