A privacidade no Marco Civil da Internet

Hoje falaremos sobre o princípio da privacidade, em continuidade a nossa série de artigos sobre o Marco Civil da Internet.


De acordo com Eric Schmidt e Jared Cohen, Presidente Executivo do Google e Diretor do Google Ideas respectivamente (A nova era digital: como será o futuro das pessoas, das nações e dos negócios. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013), se você, leitor, for um jovem profissional urbano morando em uma cidade dos Estados Unidos, em um futuro breve, sua manhã poderá parecer algo assim:

Não haverá despertador em sua rotina de acordar – pelo menos não no sentido tradicional. Em vez disso, você será despertado pelo aroma fresco, pela luz entrando no quarto enquanto as cortinas se abrem de modo automático e por uma suave massagem nas costas administradas por uma cama high-tech. Você provavelmente vai acordar renovado, pois dentro do travesseiro haverá um sensor especial que monitora seus ritmos de sono, determinando como precisão quando acordá-lo sem prejudicar seu ciclo de REM (rapid eyes movement, movimento rápido de olhos, que indica que a pessoa está sonhando).

Para Schmidt e Cohen, em um futuro breve seu apartamento será uma orquestra eletrônica, e você será o maestro. Assim que o seu travesseiro lhe acordar, ele poderá comunicar a máquina de café acerca deste fato. Automaticamente, a máquina de café começará a passar o seu café favorito. Sim, o seu café favorito. Também a máquina de café terá “inteligência” para aprender os seus hábitos e gostos pessoais. Aliás, comprar café também não será um problema. Ao aprender um pouco sobre você, a máquina de café terá condições de sugerir novos sabores e, automaticamente, efetuar a compra (obviamente, após orçar em qual loja o produto está mais em conta).

O que acabamos de descrever é um cenário futuro, no qual todos os dados da sua vida pessoal e profissional estarão armazenados em nuvens – sistema de armazenamento digital remoto com capacidade ilimitada – e poderão ser acessados, de forma ampla e geral, a partir de cada um de seus aparelhos eletrônicos, que passarão a “conversar entre si”. Se, antes, a Internet comunicava apenas pessoas (Internet das Pessoas), em breve, passará a comunicar também as coisas (Internet das Coisas). E, em um futuro não muito distante, passará a comunicar todas as pessoas e todas as coisas (Internet de Tudo).

Diante de todo esse cenário, o que dizer da privacidade? Se, hoje, a casa do futuro de Eric Schmidt e Jared Cohen pode ainda não ser uma realidade – ao menos para a maioria das pessoas – o fenômeno do Big Data, sim, já é concreto. A opção de “deletar”, é uma grande ilusão no fenômeno da Internet. Todos os dados e informações pessoais que inserimos em e-mails e redes sociais não são passíveis de ser “deletados”, permanecendo arquivados nas nuvens e, consequentemente, formando um perfil a nosso respeito.

Para além deste mecanismo, hoje em dia os profissionais da área da tecnologia da informação, com as devidas ferramentas, são plenamente capazes de recuperar os dados outrora deletados. Em verdade, sequer é preciso ser um expert em TI para acessar informações antigas. Faça a prova, caro leitor: acesse o site Wayback Machine, que coleta dados inseridos pelos usuários na Internet desde 1996, e pesquise o termo que bem entender. O banco de dados do site contém 505 bilhões de páginas salvas ao longo das últimas duas décadas.

É possível, por exemplo, verificar quais foram as notícias que constaram na capa do jornal New York Times de novembro de 2011 ou mesmo relembrar como era o layout da página inicial do Facebook em janeiro de 2006:

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Atualmente, há mais páginas na Internet do que estrelas em nossa galáxia. Estima-se que centenas de bilhões de livros foram publicados em quinhentos anos, desde a invenção da prensa por Gutenberg; curiosamente, este mesmo volume de informação é inferior à quantidade mensal de conteúdo inserido na web. Se o “tempo é o melhor remédio”, como anuncia o famoso adágio popular, na Internet essa máxima não possui qualquer sentido.

Imaginemos, por exemplo, uma pessoa que já na nasceu na égide da Internet, e teve inclusive fotos de sua maternidade hospitalar postadas em redes sociais, por diversos amigos e conhecidos, nas mais diversas plataformas e aplicações de Internet. Não, não há como “deletar” esses registros. O fato é, alertam Eric Schmidt e Jared Cohen: trata-se da primeira geração de seres humanos a ter um registro completo e inapagável de suas vidas:

Fará diferença para você se o médico da família passou seus finais de semana escrevendo longos arrazoados contra imigrantes, ou que o técnico de futebol de seu filho trabalhava como guia turístico na zona de prostituição de Bangcoc aos vinte anos? Esse nível detalhado de conhecimento sobre seus pares e líderes vai produzir consequências inesperadas dentro da sociedade.

Esse registro completo e “indeletável” terá consequência nefasta na vida de um jovem, por exemplo, que não poderá mais se dar ao luxo dos devaneios e inconsequências da juventude. Ou, pior, as possibilidades de reabilitação para apenados ficarão sensivelmente dificultadas pela “marca d’água” que passará a constar sobre a sua pessoa. Tudo, agora, passará a ser gravado e eternizado, sem possibilidade de esquecimento. E, pior, o pouco de privacidade que existia antes irá desaparecer porque os aparelhos que as pessoas carregam o tempo todo funcionam também como equipamentos de vigilância.

Visando a impor freios neste avassalador cenário é que a privacidade exsurge como um pilar fundamental do Marco Civil da Internet. Conforme expusemos na semana passada, a regulamentação da Internet oferecida pelo Marco Civil pode ser imaginada como uma grande construção civil, mais precisamente como um enorme edifício legislativo em favor do internauta. Na base, está a liberdade de expressão. Formando os pés da base, estão instaladas três largas colunas. Após abordamos a coluna da neutralidade da rede, hoje nosso escopo é o pilar da privacidade.

Privacidade no Marco Civil da Internet

A privacidade é um princípio norteador do Marco Civil da Internet. Para além da sua natureza jurídica principiológica, em sua afeição de regras jurídicas, dentro do escopo dos Direitos e Garantias do Usuário, desdobra-se em: “proteção da privacidade”, em si; e “proteção dos dados pessoais”.

Acerca da privacidade, em si, o Marco Civil cria três inviolabilidades básicas (art. 7º):

I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada;

II – inviolabilidade e sigilo do fluxo de comunicações pela internet;

III – inviolabilidade e sigilo de comunicações privadas armazenadas.

Por outro lado, no que atine à proteção de dados pessoais, o Marco Civil prevê o não fornecimento a terceiros de dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet (salvo mediante consentimento livre, expresso e informado). O consentimento, que pode tomar a forma de um mero “aceite” em Termos de Uso e Políticas de Privacidade, passa a ser a pedra angular do Marco Civil, sendo necessário para todas as atividades de coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais.

A importância da garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações, dentro do aspecto dos Direitos e Garantias do Usuário é tamanha que acabou estampado como “condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet”, sendo nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem esses direitos, ou impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas, pela internet.

O pilar da privacidade, entretanto, para além da natureza jurídica principiológica, e também de regras jurídicas, empoderando o usuário com direitos subjetivos, também cria regras de condutas para provedores de aplicação e conexão à Internet. Assim, deverão os provedores de aplicação e conexão promover a imediata e definitiva exclusão dos dados pessoais que lhe tiver sido fornecido, bastando requerimento expresso do titular do dado pessoal, ao término de determinada relação.

Com o intuito de proteger a privacidade do usuário, o Marco Civil determina a necessária adoção de políticas de governança da informação dentro das empresas, incluindo o controle de acesso aos dados; mecanismos de autenticação; inventário de quem teve acesso aos dados; criptografia e medidas tecnológicas para assegurar a integridade dos dados; e separação de bancos de dados comerciais.

O Marco Civil da Internet estabelece, por fim, o princípio da retenção mínima de dados, que deverá servir de paradigma norteador para a tomada de decisões nas empresas, através da obrigação de reter a menor quantidade possível de dados pessoais, comunicações privadas e registros de conexão e acesso a aplicações.

São, em síntese, grandes avanços que poderão nos resguardar nesse futuro não tão distante de que nos falam SCHMIDT e COHEN. Até mesmo porque, nunca é demais recordar que os erros do passado, em questão de minutos, sempre podem voltar para nos atormentar no presente, causando graves efeitos quanto menos esperamos.


Bernardo de Azevedo e Souza – Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

Mauricio Brum Esteves – Mestrando em Direito. Advogado.

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